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. blog de Fabio Camarneiro

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25 November 2020

mulher oceano (2020)

 


Cada época histórica tem seus próprios temas e obsessões. Quando notados, revelam muito do que atende pelo pomposo termo Zeitgeist. Quando despercebidos, são reduzidos a meros clichês: temas e figurações tão repisados que parecem esgotados de sua capacidade de revelar algo sobre seu tempo.

Um olhar desatento poderia encarar Mulher oceano, a estreia na direção da experiente atriz Djin Sganzerla, como um filme de clichês, uma colagem de cenas e situações vistos em filmes anteriores: da cena de karaokê de Encontros e desencontros (Lost in Translation), de Sofia Coppola, às mergulhadoras de Ama-san, documentário de Cláudia Varejão; dos filmes urbanos cariocas (o pai empobrecido a esbanjar dignidade; a violência de uma demissão eminente em frente ao cenário de cartão-postal da Baía de Guanabara; a vida noturna com os amigos) à multiplicação de identidades de A dupla vida de Véronique (La double vie de Véronique), de Krzysztof Kieślowski.

Mas, ainda que muito pareça estar sendo revisto, há também uma sensação contrária. Como se, ao revisitar situações conhecidas, fosse possível senti-las como na primeira vez. A personagem da mulher-viajante representa isso: totalmente conectada com as pessoas através do celular e do computador enquanto demonstra sincero interesse pelo que lhe é diferente, ela tenta recuperar, nas coisas e pessoas que encontra em seu caminho, a força do primeiro olhar, o sentimento de descoberta.

Mulher oceano é, desde seu título, um filme feminino, que reflete outro clichê: a dualidade (ou multiplicidade) associada ao arquétipo feminino. A(s) personagem(ns) de Djin Sganzerla aparece(m) ora no Brasil, ora no Japão. Ora preocupada em escrever um livro, ora em fazer uma travessia no mar a nado. Ora lidando com os cacos de seu passado, ora negociando com as exigências do trabalho em uma empresa. Duas mulheres, que podem ou não ser a mesma pessoa — isso pouco importa. O que interessa é o caminho subterrâneo (melhor dizer “submarino”) que conecta essas duas figuras: toda uma ideia de “profundidade” e de coisas ocultas. Mas também, e de maneira mais prosaica, toda uma ideia de montagem cinematográfica.

Dizer que o Rio de Janeiro poderia ser Tóquio ou que o Oceano Pacífico poderia ser o Atlântico seria retomar ainda outros clichês. Apesar de todas as diferenças (que não desaparecem), Mulher oceano trabalha na criação de aproximações, ecos, espelhamentos e desdobramentos entre seus elementos. No país oriental, uma ama-san afirma que, quando ao se perceber presa durante um mergulho, basta soltar a corda. O difícil, segundo ela, é lembrar-se disso no momento necessário, quando surgem o medo e o desespero. A corda — em seu sentido fílmico, seria a montagem, liame entre uma imagem e outra, entre uma ideia e outra.

Essa “corda” que reúne todas as imagens é mais que uma ideia de “feminino” e mais que o corpo feminino que organiza o filme (à frente e atrás das câmeras). Tal “corda” é justamente o tal Zeitgeist, o espírito de um tempo obcecado pela ideia de “estar conectado” — seja pela tecnologia (as telas), seja com a natureza (o mar), seja consigo mesmo. Se, na narrativa do filme, a imagem de Djin Sganzerla atende por dois nomes distintos (o que indicaria duas personagens), as fotografias de seu corpo nu, conforme seu pedido, devem permanecer anônimas. Um corpo sem nome e sem identidade ou, antes, um corpo em busca de um nome e de uma identidade. Mulher oceano é, em mais de um sentido, um filme sobre aprender a soltar as cordas, sobre libertar-se de identidades impositivas, sobre permitir-se ser outras pessoas. Seja durante um mergulho, seja na busca pela escrita de um romance, seja na entrega do corpo ao olhar do outro.

Quem seria esse “outro” no caso da delicada cena da sessão fotográfica? Claro que o personagem do escritor japonês, seu guia por terras estrangeiras. Mas também a câmera tateante, operada por André Guerreiro Lopes, constante parceiro artístico (e de vida) da diretora. E, além disso, também de um deslocamento, similar ao que acontece no interior da narrativa: tem-se a diretora Djin que observa a atriz Djin e que percorre seu próprio corpo em busca de talvez redescobrir-se, em busca de talvez reinventar-se. O próprio corpo (e a própria identidade) como territórios desconhecidos.

Nesse sentido, o espelhamento entre a personagem da nadadora e a da escritora supera um mero jogo de construção pós-moderna, uma espécie de “quem imagina quem”, para alcançar uma alteridade reflexiva, preocupada com as estranhezas (e delícias) de ser quem se é. Sim, é preciso perder-se para se reencontrar. Para poder renascer, é preciso lançar-se ao fundo do mar sob o risco de não mais voltar.

Após anos dedicados ao ofício de atriz, no teatro e no cinema, Mulher oceano mostra Djin Sganzerla a se reinventar diretora. O caráter de novidade e descoberta presente em vários momentos, e que poderia ser entendido como algo banal em filmes de estreia, é na verdade muito mais raro do que se imagina, bem como mais difícil do que parece de ser atingido. Em Mulher oceano, os momentos de hesitação são superados pelo entusiasmo com que coisas e pessoas são observadas. Vemos aqui a diferença entre os tantos primeiros filmes que parecem afirmar “eu posso filmar” e um outro que afirma, simplesmente: “eu vejo”.

À viajante em terra estrangeira, resta apenas isso: a possibilidade de ver antes de tentar compreender o que a rodeia. A nadadora, pelo contrário, parece nunca enxergar as evidências, sendo sempre enganada por sua intuição, seja na cena da “demissão”, seja na dos testes ergométricos etc. Uma espécie de aprendizado parece separar uma e outra personagem. Como se uma estivesse ainda prestes a romper as cordas enquanto a outra já tivesse feito isso.

Haverá talvez quem veja em Mulher oceano um filme sem grande novidade, o que não deixa de ser verdadeiro. Mas sua grande força é justamente um olhar atento sobre aquilo que aparentemente sempre estive aí. Olhar que parece transformar o corriqueiro em inusitado e o inusitado em corriqueiro.

Entre as velhas mergulhadoras japonesas, algumas por vezes se esquecem de como retornar à superfície. Esse delicado instante entre a vida e a morte, entre as profundezas do oceano e sua superfície, é o difícil território que o filme de Djin Sganzerla parece habitar.

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29 March 2020

. conceitos fundamentais da história da arte

Em O que é arte (15ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 38), o professor da Unicamp Jorge Coli apresenta de forma resumida as distinções entre dois períodos da história da arte, o classicismo e o barroco, conforme Heinrich Wölfflin (1864-1945) em seu Princípios fundamentais da história da arte (1915):
1) o classicismo é linear, o barroco, pictural;
2) o classicismo utiliza planos, o barroco, a profundidade;
3) o classicismo possui uma forma fechada, o barroco, aberta;
4) o classicismo é plural, o barroco, unitário;
5) o classicismo possui uma luz absoluta, o barroco, relativa.
Um retorno a Wölfflin pode nos embasar a cotejar essas distinções a partir das obras abaixo:

O nascimento da Vênus
(Nascita di Venere, c. 1484-86)
Sandro Botticelli (1445-1510)
têmpera sobre tela, 172,5 cm × 278,9 cm, Galleria degli Uffizi (Firenze)

Judite decapitando Holofernes
(c. 1598-1599)
Michelangelo Merisi da Caravaggio (1571-1610)
oil on canvas, 145 cm × 195 cm (57” × 76.7”), Galleria Nazionale d’Arte Antica (Roma)

A cena bíblica acima é narrada em O livro de Judite — que entra no acampamento do exército inimigo, participa de um banquete, seduz o comandante Holofernes e corta-lhe a cabeça.

Esse mesmo episódio foi também retratado por uma artista mulher, Artemisia Gentileschi, muito inspirada por Caravaggio e 22 anos mais jovem que ele:

Artemisia Gentileschi (1593-1656)
oil on canvas, 158,8 cm × 125,5 cm (6’ 6” × 5’ 4”), Museo Capodimonte (Napoli)

A partir dessas imagens, podemos também avaliar diferentes visões (praticamente contemporâneas) de uma mesma história bíblica à luz das questões de gênero.

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E também pensar em como o barroco atingiu certo ápice em Diego Velázquez, aqui com seu arqui-famoso As meninas:

Las meninas
(1656)
Diego Rodríguez de Silva y Velázquez (1599-1660)
oil on canvas, 318 cm × 276 cm (125.2 in × 108.7 in) Museo del Prado (Madrid)

Um dos melhores capítulos sobre o quadro ainda é aquele em As palavras e as coisas (trad.: Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999), de Michel Foucault. Recentemente publicado no Brasil, Nada se vê: seis ensaios sobre pintura (trad.: Camila Boldrini; Daniel Lühmann. São Paulo: Ed. 34, 2019), de Daniel Arasse, conta com um muito bem informado capítulo sobre a obra-prima do pintor espanhol. Uma boa introdução às questões levantadas pelo quadro pode ser encontrada no texto de Alexandre Sá na revista Concinnitas, publicação do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. E uma visita virtual pode ser realizada a partir do sítio do Museo del Prado.

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. krzysztof penderecki (1933-2020)


Morreu Penderecki.

Sua música, inseparavelmente entranhada na memória de filmes como O exorcista (Friedkin); O iluminado (Kubrick); Coração selvagem, Império dos sonhos e da série Twin Peaks (Lynch); Ilha do medo (Scorsese), entre outros.

Sua talvez mais impressionante realização, a Trenódia para as vítimas de Hiroshima, composta em 1960, lembra as 140 mil pessoas (mais de um terço da população da cidade) que morreram apenas em 1945 pela explosão ou consequências da bomba atômica lançada pelo governo dos EUA sobre a cidade japonesa de Hiroshima (sem contar os posteriores casos de câncer e outros problemas de saúde, que se estenderam por décadas, tampouco as mortes provocadas pela segunda bomba, jogada sobre Nagazaki).

Esta pungente peça — assim como o livro de John Hersey (Hiroshima. trad.: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2002); ou o filme Black Rain (黒い雨, Shohei Imamura, 1989); ou a peça de teatro Os sete afluentes do rio Ota, de Robert Lepage (1989), montada no Brasil com direção de Monique Gardenberg — está entre as maiores criações humanas realizadas à sombra desse muito trágico acontecimento, esse crime contra a humanidade.

Além de compositor, era um muito ativo regente, com algumas passagens pelo Brasil, a mais recente à frente da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, em setembro de 2017. Abaixo, o segundo movimento da Sinfonia nº 3, de Górecki, com a Orquestra da Rádio Nacional Polonesa conduzida por Penderecki e participação da cantora Beth Gibbons — talvez mais conhecida por seu trabalho com a banda inglesa Portishead. (Pode-se ouvir a peça completa também no Spotify.)

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Aqui, na página da Osesp, um ensaio do musicólogo Mieczyslaw Tomaszewski sobre o compositor polonês. E abaixo, uma performance da Trenódia (uma das músicas mais impressionantemente dolorosas de todo o repertório sinfônico), com a Orquestra Sinfônica da Rádio Finlandesa, sob a regência de Krzysztof Urbański.

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24 March 2020

. breve panorama da história da música ocidental

Ludvig van Beethoven

Uma playlist com um breve (mas não rápido) panorama da história da música ocidental, principalmente da música clássica, e com alguns rápidos desdobramentos para a música popular.

No começo, algumas poucas obras do Renascimento para logo chegarmos a Johann Sebastian Bach — a pedra fundamental da música ocidental — e o barroco.

Depois, com Mozart, o classicismo. E, de Beethoven para frente, o romantismo. (Com direito a algumas "releituras" inusitadas do autor da famosa Nona sinfonia.)

De Dvořák em diante, alguns exemplos do nacionalismo (inclusive com nosso Carlos Gomes) até chegarmos a Wagner e uma espécie de "encruzilhada", ambas saindo do mestre de Bayreuth:

a) em um caminho, o romantismo tardio (com diferentes versões do quarto movimento da Primeira sinfonia de Gustav Mahler, para fins de comparação).

b) no outro, de Debussy em diante, a música moderna, o dodecafonismo de Schoenberg, o atonalismo...

Das harmonias de Debussy, chegamos ao maestro Antonio Carlos Jobim e um bloco com a música brasileira da primeira metade do século XX.

E depois, com Gershwin, chegamos ao jazz. (Ou talvez com o jazz, chegamos a Gershwin.) Permanecemos ainda com compositores estadunidenses (Bernstein, Copland) e rapidamente estamos na Berlim dos últimos dias da República de Weimar com as canções de Kurt Weil... até que surge Messiaen e o trauma dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial, que serve de inspiração a Penderecki para sua Trenodia para as vítimas de Hiroshima. (Uma das músicas mais chocantes e pungentes da lista.)

Daí em diante, a música contemporânea com seu uso de fitas pré-gravadas, de loops, de experiências de espacialização, uma revisão das técnicas do atonalismo a partir de relações com as ciências naturais e matemáticas, um retorno ao lirismo, as conexões entre a música clássica e as manifestações da música popular, a busca por uma nova transcendência... até os dias de hoje.

Boa escuta!

No Spotify.

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Abaixo, um vídeo com sir Simon Rattle (um dos maiores regentes da atualidade) conduzindo uma peça de György Ligeti, com performance da maestrina e soprano canadense Barbara Hannigan.


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. observações sobre o Renascimento

O Renascimento foi um período complexo, marcado por intensas mudanças nas ideias e nas relações sociais e econômicas, que durou mais de dois séculos (do final do século XIII à primeira metade do XVI) e teve como um de seus apogeus algumas das obras de arte mais importantes da história.

Observe com atenção o desenho abaixo, feito em uma página de caderno e conhecido como O homem vitruviano, de autoria de Leonardo da Vinci:

O homem vitruviano (c.1492)
Leonardo da Vinci (1452-1519)
tinta sobre papel, 69 cm × 57 cm, Gallerie dell’Accademia (Venezia)

Perceba as conexões entre o desenho acima e as afirmações do livro O Renascimento (16ª ed. rev. São Paulo: Atual, 1994), em que o historiador Nicolau Sevcenko coloca as bases materiais e ideológicas do Renascimento como sendo
[um] conjunto de circunstâncias [que] instituiu a prática da observação atenta e metódica da natureza, acompanhada pela intervenção do observador por meio de experimentos, configurando uma atitude que seria mais tarde denominada científica. O objetivo era obter o máximo domínio sobre o meio natural, a fim de explorar-lhe os mínimos recursos em proveito dos lucros de mercado. O instrumento-chave para o domínio da natureza e de seus mananciais, através do qual se poderia condensar sua vastidão e variedade numa linguagem abstrata, rigorosa e homogênea, era a matemática. (SEVCENKO, 1994, p. 12)
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Uma das pinturas mais famosas do mundo:

Mona Lisa (c.1503-1516)
Leonardo da Vinci (1452-1519)
óleo sobre madeira, 76,8 × 53 cm, Musée du Louvre (Paris)

No comentário de Sevcenko sobre as artes plásticas no período do Renascimento:
as artes plásticas acabaram se convertendo num centro de convergência de todas as principais tendências da cultura renascentista. E, mais do que isso, acabaram espelhando, através de seu intenso desenvolvimento nesse período, os impulsos mais marcantes do processo de evolução das relações sociais e mercantis. (SEVCENKO, 1994, p. 25)
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Um vídeo com curiosidades do quadro mais famoso do Louvre. (Em inglês, com legendas também em inglês.)


aqui, uma visita virtual ao quadro.

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22 August 2019

once upon a time... in hollywood (2019)


Nove notas sobre o (nono) filme de Quentin Tarantino:

1. Como esperado nos filmes do diretor, Era uma vez... em Hollywood está repleto de referências cinéfilas. Quem gosta de passatempos do tipo "ligue os pontos" ou "jogo dos sete erros" pode encontrar prazer em identificar a maior quantidade possível delas. Para quem não se incomoda em trapacear um pouco, pode-se sempre recorrer às ferramentas de busca online. À parte a diversão, alguns chamarão "autorreferência" ao que outros preferirão "narcisismo barato". Para estes, é preciso lembrar que nenhum elenco com Leonardo diCaprio e Brad Pitt pode ser impunemente chamado de "barato". "Narcisismo", talvez; "barato", nunca.

2. Mesmo sem ser barato, foi bem pago. Entre os coadjuvantes, a hippie caronista de Margaret Qualley ou a atriz mirim de Julia Butters magnetizam suas cenas: estreantes (ou quase) com atuações de veteranos. Tarantino, goste-se dele ou não, é excepcional diretor de atores, apesar de seu insistente gosto pela caricatura. (Aliás, quem poderia interpretar os bípedes mais elegantes da recente história universal - Bruce Lee, Steve McQueen - e ao mesmo tempo evitar a caricatura?) Pode-se notar que o Oscar fez bem a DiCaprio, um bom ator que, até receber a estatueta, parecia obcecado em causar boa impressão, em realizar qualquer "esforço a mais" que pudesse servir ao breve clipe que ilustra a indicação ao prêmio. (De certa maneira, deu certo: venceu por uma interpretação marcada por toda sorte de excessos.) Em Era uma vez... em Hollywood, ao invés de esforço, o ator mostra fluidez, uma capacidade (invulgar) de ir, em segundos, da insegurança à histeria; da angústia à empáfia. E, se DiCaprio tende ao peso, Brad Pitt é todo leveza. (E a leveza, sabe-se, é a matéria-prima de toda grande atriz e de todo grande ator.)

3. Cachês e suas correlatas crises de insegurança são um dos motes centrais em Era uma vez em... Hollywood. Os inseparáveis amigos são as duas faces da indústria, ambos afetados pela deterioração das condições do mercado de trabalho. Com dificuldades para encontrar oportunidades, o dublê conta com a interferência (ou insistência) do amigo famoso. E, como se Hollywood houvesse inventado o Uber, vemos um trabalhador (da indústria de cinema) à disposição por tempo indeterminado (no set, vestido com o figurino etc.), apesar de não estar sob nenhuma espécie de contrato além de um mero acordo verbal. E ali ele permanece, a esperar um chamado que talvez nunca ocorra, sob a ameaça de ser dispensado a qualquer momento, por qualquer motivo, seja ele fútil (uma briga) ou grave (a suspeita de feminicídio). Por outro lado, a vida também não é exatamente mais fácil para o ator-quase-celebridade (eis a questão) que não encontra trabalhos que correspondam ao seu currículo (ou a suas expectativas de carreira). Vemos o que qualquer um que já frequentou sets de cinema conhece bem: atrizes, atores (ou dublês) são feitos de muita espera - e, por vezes, de muitos cigarros. Em meio a tudo isso, Tarantino acena a certa "inteligência da indústria" (o "gênio do sistema" de Thomas Schatz), na figura de um produtor judeu (um Al Pacino também caricato) que busca alternativas que, se hoje, de forma anacrônica, soam bastante razoáveis, à época pareciam muito longe disso. (Mas Tarantino esquece de dizer a seu público que Hollywood, em fins dos anos 1960, enfrentava grave crise econômica. Sobre o tema, ver The Kid Stays in the Picture, sobre Robert Evans, controverso produtor de alguns sucessos do período como... O bebê de Rosemary.)

4. Ainda sobre as questões salariais, Tarantino apresenta um teorema em que os cachês pagos têm valores inversamente proporcionais à autoconfiança daqueles que os embolsam. Se os astros principais (seja Rick Dalton, personagem de DiCaprio, seja Bruce Lee, personagem de Mike Moh) a todo tempo duvidam de si mesmos, o dublê interpretado por Brad Pitt demonstra uma confiança inabalável (em si, em seu carro, em sua cadela), uma quase-empáfia feita sob medida para este ilustre desconhecido. Quando sobe em um telhado para consertar uma antena, ele sabe que aquele ponto de observação privilegiado (de lá pode-se espiar a casa dos vizinhos) é também um ponto privilegiado para ele próprio ser observado. Não demora para a autoconfiança aparecer mais uma vez, com um despir-se da camisa e um gesto lânguido para acender (ei-lo novamente) o cigarro. Mais tarde, outro personagem lembra que Booth tem sobrenome de assassino e sob ele paira uma grave suspeita (do qual o filme parece isentá-lo). Mas do alto do telhado (ou nos fundos de seu trailer emporcalhado), o dublê parece acreditar que a) jamais cometeu qualquer crime, ou b) não merece punição por qualquer crime cometido. Temos um Raskólnikov galã de Hollywood, reverso perfeito de outro Raskólnikov, muito mais odioso (e que, diferentemente do personagem de Crime e castigo, parece jamais ter experimentado qualquer espécie de remorso ou arrependimento): Charles Manson.

5. Tarantino está longe de um Dostoiévski e seu filme não é um Pickpocket. Ainda assim, a impunidade parece habitar seus interesses. Uma impunidade, é preciso frisar, um tanto seletiva: se alguns podem continuar livres, mesmo tendo talvez assassinado as esposas, aos outros é reservado o lança-chamas e a incineração sumária. É como se Tarantino fosse um juiz bastante peculiar, que estabelece seus vereditos não após o crime ser cometido, mas antes: àqueles que já assassinaram, a liberdade; aos que, suspeitamos, podem eventualmente vir a cometer um crime, uma execução sumária, odiosa, sem tribunal. A bem da verdade, nós (público sanguinário e bem informado, leitor assíduo de redes sociais) não sabemos de nada. Mesmo assim acreditamos fortemente, a partir de evidências tiradas de ilibadas páginas da internet, que alguns merecem morrer a fortiori, para deleite das plateias. (Aqui, o tom de indignação, justiça seja feita, talvez não esteja na conta do filme de Tarantino. No dia em que escrevo estas linhas, a se embaralhar com as imagens do filme, o governador do Rio de Janeiro comemora sem constrangimento a morte de um homem que havia sequestrado um ônibus durante o trajeto sobre a ponte Rio - Niterói.) Tarantino (Witzel?) possui bom timing histórico e retoma o western (um de seus gêneros de devoção - do cineasta, não do governador) ao mesmo tempo em que o mundo ocidental parece retomar um dos problemas centrais do "gênero norte-americano por excelência": como estabelecer a lei frente à barbárie? (E se alguns westerns retrataram a barbárie ao lado dos povos originários, afirmamos aqui que ela está, como sempre esteve, muito mais ao lado dos "brancos civilizados", esses Brad Pitts de antanho.)

6. Era uma vez... em Hollywood é abertamente saudosista e, como bem apontou João Pereira Coutinho na Folha de S. Paulo, escancaradamente reacionário. Se, em um western de John Ford, a lenda era mais forte que a história - e imprima-se a lenda -, em Tarantino é a mentira que supera a lenda. Logo, imprima-se a mentira, mesmo porque ninguém parece se importar muito... A associação direta, quase didática, do movimento hippie à família Manson e a posterior inferência entre estes e os nazistas de celuloide (tanto uns quanto os outros acabam mortos pelo fogo do lança-chamas), parece dar fôlego a esse mal-estar contemporâneo: o revisionismo histórico irresponsável. Pelo menos desde Bastardos inglórios, Tarantino gosta de reescrever a história como um grand guignol farsesco. (Qualquer coincidência com os terraplanistas ou com os negacionistas da catástrofe climática não é mera coincidência.) Mas, em meio a tudo isso, o garimpo musical do realizador, com músicas pop dos anos 1950 e 1960, provoca cúmplices sorrisos no espectador informado, e sorrisos cúmplices (a sensação de pertencimento a um grupo) têm sido, nos tempos que correm, a forma mais eficaz de se encerrar qualquer debate. E nenhum senão poderá fazer frente às vozes de uma Aretha Franklin, de um Paul Simon, de um Billy Stewart.

7. Ao invés de manipulação do tempo histórico, poderíamos dizer "manipulação do tempo cinematográfico". Tarantino sempre foi mestre no controle das durações (nas cenas) e das temporalidades (nas estruturas narrativas). Aqui, esse traço aparece elegante como nunca. Nesse sentido, trata-se de um dos melhores trabalhos do realizador, com um ritmo bastante peculiar, diríamos mesmo "sedutor", mérito também de Fred Raskin, responsável pela montagem deste e dos dois longas anteriores do diretor (assumindo de vez o lugar da falecida Sally Menke, que montou todos os demais longas de Tarantino). Se em Os oito odiados o andamento era um tanto auto-indulgente (e alguns minutos a menos talvez não fizessem mal ao filme), Era uma vez... em Hollywood apresenta ritmo mais uniforme. (Exceção feita à sequência final, que, para o bem e para o mal, destoa radicalmente do resto.)

8. Ainda sobre a manipulação da duração, é preciso lembrar que o modelo maior de Quentin é Sergio. Não Corbucci, explicitamente citado em Era uma vez... em Hollywood, mas "o outro Sergio", implicitamente citado. O cinema de Tarantino parece sempre debater-se nessa tentativa de equilibrar-se entre os dois Sergios, um dado ao excesso, outro ao rigor formal.

9. Os duplos e os espelhamentos possuem ainda outra dimensão: o filme inicia-se com uma entrevista na TV e termina (há uma cena durante os créditos de encerramento) com um comercial para a TV. Imagens em preto e branco, com os personagens falando diretamente à câmera, interpelando o espectador. A televisão emoldura Era uma vez... em Hollywood, o que não deixa de ser um tanto irônico em um diretor tão ostensivamente cinéfilo. Televisão aqui vista como propaganda, seja do seriado, seja (ele novamente) da marca de cigarros, e que parece trazer em si uma ideia de engano. Na derradeira ação do filme, o ator se rebela contra sua imagem duplicada, uma boa síntese do que se acaba de assistir. Na cena do início, o outro duplo do ator (seu dublê) diz que seu trabalho é, para usarmos o bom português, "carregar o piano" - outro bom resumo da questão. Se Era uma vez... em Hollywood corresse ao contrário, da última síntese (o ímpeto autodestrutivo) à primeira (a necessidade de se escamotear a ideia de trabalho nas imagens produzidas por Hollywood), estaríamos em outro filme, um dos melhores sobre os bastidores da indústria de cinema: A cidade dos desiludidos (Two Weeks in Another Town), dirigido por Vincente Minnelli e recuperado em O desprezo (Le Mépris), de Godard. Mas o que tudo isso pode quer dizer? Talvez que a auto-negação blasé está para a autodestruição assim como um filme está para seu making of. Ou, se passarmos da realização para a crítica, trata-se apenas deste autor que, ciente dos prazeres da citação cinéfila, decidiu demonstrar seus invejáveis dotes em provocar corridas às ferramentas de busca online.

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17 January 2017

nocturnal animals (2016)


Saio da sessão de Animais noturnos e só consigo pensar nos óculos de aros imensos que Amy Adams usa para ler a novela que recebeu pelo correio do ex-marido... Fico me perguntando se - eu mesmo um adepto de armações mais pesadas - não estaria fugindo do filme em si, mas depois vou me dando conta que pelo contrário: aqueles óculos chamam tanto a atenção sobre si mesmos que acabam por se transformar em uma espécie de máscara - e eis um dos temas centrais do filme.

Nos talvez 20 primeiros minutos da projeção, enquanto vamos sendo apresentados ao mundo da personagem principal, transborda essa sensação um tanto entediante do excesso de artificialismo: uma mistura de publicidade de revista de aeroporto com catálogo de moda e design para o 1% mais rico do planeta. Não casas, mas maquetes; não pessoas, mas manequins; não rostos, mas - novamente - máscaras.

(Deve-se registrar também, para explicar o supracitado tédio, a aparente indecisão - e muitas vezes, a ineficácia - do diretor na escolha dos ângulos de câmera. os sucessivos campo e contracampo da festa, logo nas primeiras cenas, demonstram um descompasso entre mise-en-scène e montagem rara mesmo em estudantes de cinema...)

De volta à ideia da máscara (essa aparência artificial que poderia somar, mas que aqui parece apenas subtrair algo da "verdade" das coisas concretas) também acompanha a cena mais constrangedora do filme. Não a interessantíssima e inusitada sequência dos créditos iniciais, que provoca uma deliciosa reação de estranheza e surpresa, a própria sequência servindo de máscara a todo o resto da projeção, mas sim a cena da reunião de trabalho, em que um grotesco close de rosto feminino, com evidentes cirurgias plásticas, serve como exemplo de que "menos é mais" (algo que, afinal, parece contraditório em uma direção de arte tão agressivamente evidente).

Para além da história da moça rica e um tanto mimada que vive um casamento infeliz (por que não se divorcia?) enquanto relembra os sonhos e as culpas de um casamento fracassado (quando efetivamente se divorciou) de um casamento infeliz, temos o que há de mais interessante no filme de Tom Ford: a ficção dento da ficção, a história do pai de família em busca de justiça... ambos (o ex-marido na vida real e o pai da história ficcional) correspondem ao corpo do mesmo ator, Jake Gyllenhaal. A ficção como máscara da realidade ou vice-versa.

Nessa história dentro da história, surge o que Animais noturnos tem de melhor: Aaron Taylor-Johnson. A extrema ambiguidade de seu personagem, que parece nunca se definir (entre infantil e perigoso, assassino e inocente injustamente acusado), é a essência do que pode significar "máscara" em uma dimensão mais profunda.

Assim, acompanhar toda a perfomance de Taylor-Johnson (com ele imitando um gato na janela do automóvel, sentado displicentemente em um vaso sanitário ou mandando beijos lascivos já na sequência final) é o que transforma os jogos de superficialidade dos cenários e figurinos em um perigosíssimo jogo entre superfície (aparência) e verdade: temas caros à tradição cinematográfica.

Com grandes performances (Gyllenhaal e Michael Shannon, brilhantes), Animais noturnos poderia ser um grande filme sobre a dissimulação e o engano mas, ao mesmo tempo, um tolo desperdício de tempo na contemplação do vazio das aparências (algo parecido é o que Adams fala das obras que exibe em sua galeria de arte).

O fascínio deslumbrado com invólucros e superfícies e a vertigem do que pode haver de trágico sob essas mesmas superfícies são os polos que movimentam o filme de Tom Ford. Poderia ser um estudo sobre a representação e a dissimulação, mas seja talvez apenas um esboço para um comercial de armação de óculos.

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14 August 2016

campo grande (2015)


À primeira vista, Campo Grande trata de um tema clichê do cinema brasileiro: as distâncias entre distintas classes sociais. No filme de Sandra Kogut, Rayane (cinco anos de idade) e Ygor (seu irmão mais velho) são deixados à porta de um prédio de apartamentos em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro. Em uma das primeiras cenas, a câmera permanece atenta à garotinha enquanto as demais personagens (mãe e filha, a empregada da família, o porteiro do prédio) tentam decidir o que fazer: conversam entre si, buscam algo na Internet, dão telefonemas. Apenas depois de certo tempo alguém resolve fazer uma pergunta à criança, que responde sem que ninguém pareça escutar.

A incomunicabilidade continua quando Regina (Carla Ribas) tenta acessar o atendimento telefônico da Prefeitura do Rio, sem encontrar a opção correta entre aquelas oferecidas pela máquina que, voz pré-fabricada e simpatia artificial, conclui que “não pode ajudar” e afirma estar “mais conectado a você”. Se, na cena anterior, os adultos não conseguem ouvir a criança, agora é a cidade que não ouve seus cidadãos.

É assim, de forma sutil, que Campo Grande cria as relações sempre incompletas entre seus personagens, pautadas pela incompreensão. Não se trata apenas de um abismo social, pois a conversa será difícil mesmo entre mãe e filha de classe média, para quem o encontro se dará apenas em pequenos gestos ou em olhares, como quando dividem um sanduíche em frente à televisão.

Os personagens – principalmente as crianças – parecem aprisionados: da janela do apartamento em Ipanema, Rayane observa a rua e bate no vidro: tenta chamar a atenção de alguém lá embaixo, mas também repete o clichê de algum filme de cadeia. Mais tarde, o orfanato também aparecerá como prisão. O uso de lentes teleobjetivas e de planos que recortam a cidade – numa negação à profundidade de campo e ao plano mais aberto, aqui bastante raros – reforça, na estética da imagem, essa sensação.

Sempre silenciadas (ninguém dá atenção ao que dizem, nem nelas acreditam), as crianças passam por todos esses diversos tipos de cárcere. Apartados de sua mãe, só lhes resta uma espécie de sebastianismo bastante pessoal, uma crença inquebrantável de que ela – a mãe – um dia retornará. Um sentimento de “ausência” que se alastra, conferindo ao filme seu ritmo lento (como o das prisões) e seus silêncios. O Rio de Janeiro aparece como cárcere, seja no bairro de classe média alta (gradeado), nas áreas próximas ao Centro e à Zona Sul (cercados por tapumes de obras) ou na periferia (em ruínas mas cercado, literalmente, por novos empreendimentos imobiliários). Os deslocamentos são difíceis: o trânsito é agressivo; os terminais de ônibus urbanos, caóticos e confusos; a sinalização nas paradas é insuficiente: não parece um lugar próprio à circulação de pessoas, mas antes a seu cerceamento, sua contenção: uma cidade-cárcere para um “rebanho” de seres humanos.

Esse Rio sombrio e incômodo revela-se quando nuvens negras de tempestade encobrem o Corcovado ou quando, na casa de classe média, relâmpagos e trovões lembram algum antigo filme de terror talvez estrelado por Vincent Price. Nesse subtexto que flerta com o macabro, as vítimas são todos os moradores da cidade, a começar pelos mais fracos e/ou indesejados: crianças, pobres etc. O algoz está além da cidade do Rio: trata-se de uma lógica voraz de destruição e reconstrução – e, nesse sentido, pela recorrência das placas e tapumes de obra, Campo Grande ficará para a história como um dos filmes definitivos das obras urbanas para a Olimpíada no Rio em 2016, que “desmontaram” o espaço urbano do Rio (da mesma maneira que a casa de Regina é desmontada e que a periferia, desde há muito tempo, já foi desmontada e vendida à especulação imobiliária).

No filme de Kogut, a ausência da mãe é também metáfora da ausência de um Estado capaz de notar os excluídos e os “indesejados”. Um Estado ao qual resta apenas endereçar uma carta muito precária (feita de garranchos), sem saber se ela, um dia, encontrará seu destinatário. Missiva em forma fílmica, Campo Grande é esta carta possível num momento de escuridão.
(Publicado originalmente no Caderno Pensar, A Gazeta, Vitória, 13 de agosto de 2016.)
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16 March 2016

the vvitch (2015)


A bruxa constrói sua atmosfera a partir das paisagens da Nova Inglaterra: seus bosques densos e suas árvores em padrões insistentemente verticais, suas cores frias e terrosas, sua bruma e sua umidade. Um movimento de câmera recorrente - uma lenta aproximação do bosque, com a trilha musical aumentando a sensação de mistério e de desconforto - marca o longa de estreia de Robert Eggers. Clichê do cinema de horror, "há algo assustador lá fora", mesmo que não saibamos do que se trata.

Em oposição a esse "lá fora", temos o espaço doméstico de uma família de puritanos ingleses do século XVII: pai, mãe, a filha mais velha (às vésperas da puberdade), o menino mais jovem, um casal de gêmeos. Na cena de abertura, eles partem exilados da segurança da vida em comunidade rumo à natureza inóspita. A oposição entre a segurança do lar e a incerteza do ambiente externo é marcada pela proibição dos filhos de se afastarem das proximidades da casa.

O pai, que tenta ser o centro (material e espiritual) da família, demonstra estar em crise. Sem fazer jus a seus próprios padrões morais, talvez ele só sirva "para cortar lenha", como alguém afirma em uma cena. O filho, que admira incondicionalmente o modelo paterno, começa a questionar seus dogmas. Após o incidente que detona todo o suspense do filme, a mãe entra em um processo de histeria crescente e, mesmo assim, mostra-se como a figura forte do casal. A imaginação de uma ameaça sobrenatural mistura-se à nostalgia da terra abandonada (a Inglaterra), e ambos os sentimentos reúnem-se na imagem de uma maçã vermelha - como aquela da bruxa do desenho animado Branca de Neve e os sete anões. Pouco a pouco, a família começa a desmoronar sobre mentiras e suspeitas mútuas.

Entre todos, a personagem que, desde os primeiros planos, cativa o interesse da câmera (e também do público) é Thomasin, a filha mais velha. Seu momento de vida é particular: seu corpo adolescente começa a deixar para trás os traços de menina e começa a insinuar uma mulher. Os pais imaginam que é hora dela deixá-los para talvez trabalhar na casa de alguma "família de bem"... A menina está prestes a deixar a segurança do lar rumo àquilo de "assustador" que tanto medo e superstição desperta nos personagens.

Talvez esse "lá fora" esteja em toda a parte, mesmo no interior da casa. A divisão entre a segurança do lar e os perigos do exterior vai, pouco a pouco, sendo revelada como falsa. À parte os elementos sobrenaturais (mais insinuados do que efetivamente mostrados, exceto por um breve momento em meio ao bosque e na cena final), A bruxa concentra-se em algo bastante natural: os filhos a superarem seus pais, revertendo assim a situação traumática (o incidente incitante) que coloca toda a narrativa em movimento: a possibilidade dos pais sobreviverem aos filhos.

A ideia do mundo "lá fora" é talvez (simplesmente) a descoberta, pelos jovens, de sua individualidade e de suas sexualidade. Sim, há algo de terrível nas transformações que levam da infância à adolescência e então à idade adulta. (E talvez não seja outro o tema do filme de Eggars.) À medida em que o filme avança, insinuam-se temas caros ao cinema moderno (seja nos EUA dos anos 1950 ou na Europa da década de 1960): o conflito entre gerações, os filhos que resolvem questionar a ordem dos pais, que descobrem que existe muito mais "lá fora" do que lhes foi dito. (Nesse sentido, A bruxa deriva diretamente de A vila, apesar de totalmente distinto: no filme de M. Night Shyamalan, o perigo não passa de uma mentira construída pelos mais velhos; no de Eggers, a ameaça é real e habita o interior de cada personagem. Aqui, a visão de mundo dos mais velhos tem pouca serventia face à complexidade do mundo "lá fora".) Trata-se menos de um embate contra algo sobrenatural e sim da gradual desagregação de um núcleo familiar e de seus padrões morais frente à natureza. Uma cena que sintetiza esses elementos mostra Thomasin questionando a coerência de seu pai, negando-o; pouco depois, ela derrota sua mãe.

De quebra, A bruxa questiona-se toda uma ideia de colonização de território (o tal "destino manifesto", que pautou a conquista do Oeste estadunidense ao entender tal empreitada com uma missão "divina"): o "lá fora" é também toda a América. Família e pátria são derrotadas face a uma sexualidade pagã, feminina e profundamente individualista. Nas imagens de Eggers, as paisagens sobrepõem-se aos personagens, que às vezes aparecem como "detalhes" em enquadramentos que privilegiam o entorno, a casa, as árvores. Em um dos raros momentos subjetivos do filme, surge um corvo a bicar um seio, o que remete ao sonho do pintor da Mona Lisa, relatado por Sigmund Freud em "Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci"... (Não por acaso, um sonho que Freud relaciona com a sexualidade do artista e com a onipresença da lembrança materna - e de sua ausência.) Além disso, os psicanalistas não deixarão escapar que o desaparecimento de Samuel se dá durante uma brincadeira de Fort-Da!

Ao final, o filme lança mão de nudez e magia para tentar dar conta da emancipação sexual de Thomasin - temos uma orgia e, talvez, um primeiro orgasmo metaforizado como levitação. O ciclo se encerra: A bruxa lança mão de um imaginário fantástico para falar de algo muito comum, mesmo banal (apesar de terrível) - a descoberta da própria sexualidade.

Pequena obra-prima, o filme de Eggers é talvez apenas humano, demasiado humano.

Abaixo, o trailer:



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11 March 2016

califórnia (2015)


O que significa Califórnia, título do filme de Marina Person?

Claro, trata-se do estado estadunidense. Mas também de um nome em um pôster preso à parede do quarto, lugar de onde chegam relatos - enviados em áudio pelo tio descolado, jornalista musical - e também músicas, estilos, imagens... Para um adolescente em São Paulo nos anos 1980, tratava-se também do "mundo lá fora", com música pop, cinema, t-shirts... A viagem à Califórnia seria uma espécie de realização do sonho de consumo da geração que cresceu alimentada pela indústria cultural.

Retrato de uma época específica, é impossível não prestar atenção à sutil construção de cenários e figurinos de Califórnia, totalmente desprovida de exageros ou clichês. Como se o encontro entre os jovens atores dos anos 2010 e seus personagens de 30 anos atrás acontecesse com a mesma suavidade com que as imagens feitas por Marina Person são montadas com trechos de outros filmes, como Pixote ou Cidade oculta, que mostram, por exemplo, carros cruzando o vale do Anhangabaú, observados a partir do Viaduto do Chá.

Além de uma época (os anos 1980), há um espaço (São Paulo) bem recortado e definido. No colégio, os personagens são arquetípicos: a dupla de amigas (uma mais permissiva, outra mais tímida) e a dupla de pretendentes (um mais sensível e introspectivo, tido como esquisito, e outro bastante popular, de beleza apolínea e com talento para os esportes). Os rituais da adolescência paulistana de classe média estão todos representados: as festinhas, as idas ao litoral (e o luau à beira-mar, com as músicas de Lulu Santos ao violão), o jantar em família.

O espaço privilegiado é o quarto, espécie de templo individual onde discos, livros, fitas cassete e HQs preenchem o tempo de ócio. (Note-se que a televisão não aparece, exceto no espaço mais comum da casa: à época, a TV representava tudo o que era "careta".) É no espaço do quarto que as individualidades são construídas, sempre a partir de modelos importados, de recomendações de amigos e/ou colegas. Quem viveu os anos 1980 deve se lembrar como era importante uma indicação decisiva; afinal, ser "apresentado" a um livro ou a uma banda era como conhecer um novo amigo, alguém que passaria a fazer parte de sua vida e de seu espaço individual de celebração.

Estela (Clara Gallo) planeja encontrar seu tio na Califórnia ao mesmo tempo em que precisa lidar com a possibilidade de perder a virgindade e com o moralismo de seu pai (Paulo Miklos) - que simboliza tanto a herança do regime autoritário dos anos 1970 no Brasil como uma geração desencantada (os yuppies), que renegou os ideias libertários dos anos 1960. Assim, para Estela e seus amigos, as canções de David Bowie são mais que meras canções, mas também a descoberta da sexualidade; as de Robert Smith, o encontro com o desconforto e com certa revolta etc.
O fantasma da AIDS transforma o ato sexual em algo potencialmente letal. A maneira como a doença é apresentada - mais por silêncios e hesitações do que por frases explícitas - é um dos vários pontos fortes do filme de Marina Person. Nas deambulações por lojas de discos ou pelos espaços da cidade, nos trajetos noturnos em busca de um lanche em meio à madrugada, São Paulo parece preencher a identidade dos personagens mais do que eles próprios poderiam ter consciência.

Uma protagonista feminina - em um filme também dirigido e fotografado por mulheres, Marina Person e Flora Dias - é um alento na produção contemporânea. A diretora constrói o "filme de formação" (Bildungsfilm?) dos anos 1980 ao mostrar que o aprendizado acontecia distante das salas de aula e das ruas, mas na intimidade dos quartos. Uma geração talvez mais introspectiva, talvez mais acossada por uma sociedade cada vez mais violenta (que o filme não apresenta).

Califórnia é uma celebração às descobertas da adolescência. Filme que remonta aos discos e livros que nos formaram - e aos que continuarão a nos formar -, repleto de memórias afetivas (especialmente musicais) dos anos 1980 e da cidade de São Paulo.

Quem viveu (esse tempo e esse lugar), verá (o filme) com imenso prazer. (Quem não viveu, também.)

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07 March 2016

a vizinhança do tigre (2014)


A primeira imagem de A vizinhança do tigre mostra Junim refestelado em um velho sofá, o forro bastante desgastado, as pernas para cima. Ele lê uma carta, cheia de rasuras, escrita com caneta Bic em uma folha de caderno escolar. O destinatário é um amigo presidiário e a carta, com suas frases truncadas e sinceras, fala da esperança em ser libertado e da vida na condicional.

Tudo é visto em um único plano, sem cortes e sem movimentos de câmera, que condensa grande parte do impacto do filme de Affonso Uchoa: Junim – como todo o resto do elenco, moradores da periferia de Contagem, em Minas Gerais – aparece totalmente à vontade em seu cotidiano. Nem exatamente documentário, nem exatamente ficção, o filme parece convidar seus personagens a interpretarem a si próprios.

A espontaneidade aparece com força nas expressões de baixo calão e nas repetidas ofensas que os amigos repetem uns aos outros – “desgraça”, “maldito” –, mas também nos sorrisos que pontuam as brincadeiras: no duelo improvisado de rap ou no combate de espetos para churrasco, que parece remeter a algum antigo filme de capa-e-espada.

Trata-se de um imaginário pautado pela violência. Jogado em uma cama, enquanto empunha um cabide cor-de-rosa como se fosse uma arma, Neguim diz que vai “matar todo mundo”, sair “estourando cabeças”. Também a música é agressiva, seja a letra do rap ou a coreografia bélica da plateia no show de heavy metal. As marcas de bala no corpo são sinal de distinção: as cicatrizes são prova de uma vida “bem vivida” – mais em quantidade que em qualidade.

Mas, apesar de toda a violência latente, a periferia em A vizinhança do tigre é calma, pacata, mesmo tediosa, com seus descampados, suas árvores (onde os meninos colhem mexericas), suas ruínas. Presta-se atenção nos ruídos silenciosos da madrugada, no nascer do sol, no horizonte de casas sem reboco. Como o próprio título revela, A vizinhança do tigre é, talvez antes de mais nada, sobre espaços e, mais especificamente, sobre esse espaço imaginário batizado de “periferia”: um lugar tão distante da população de classe média – que só consegue representá-lo através do noticiário sensacionalista dos telejornais – e, ao mesmo tempo, tão próximo: basta virar uma esquina ou atravessar uma rua.

Os signos de destruição surgem em toda parte. Em uma cena, Menor – ou Mix, sua alcunha de pichador – termina de quebrar o vidro de uma janela. Em outro momento, ele e Neguim atiram pedras nas paredes de uma construção abandonada. Lado a lado com a destruição, Junim vai trabalhar em uma obra de construção – trabalho duro (só aos finais de semana), remunerado com 30 reais por dia. Eventualmente, eles consomem drogas em ambientes escuros, num eco de “No quarto da Vanda”, do português Pedro Costa.

O futuro é incerto: Menor repetiu de ano no colégio. A mãe de Junim coloca sobre o rádio uma caneca plástica com água e faz uma prece. Pede que o filho beba (para “ganhar juízo”, pois “está precisando”). O crime surge como uma memória distante, mas incontornável: há sempre uma dívida, um débito do qual se tenta escapar. (E do qual Junim efetivamente escapa, em uma tocante – ainda que contida – despedida.)

Parte da força do filme reside no registro do momento presente: em Menor pintando a cabeça de Neguim com tinta corretiva (do tipo Liquid Paper) e, depois, assinando “Mix” em sua própria sua pele. Em outra cena, em uma parede, “Mix” aparece grafado lado a lado com “Santinho”, apelido de Eldo – que faleceu durante o longo período de filmagens. Elegia ao amigo morto e celebração à amizade de Mix, Neguim e Junim, A vizinhança do tigre tem o bairro Nacional como seu grande personagem central.

Junto a Adirley Queirós (entre outros), Affonso Uchoa faz um filme que – como a carta do início – não tem medo das rasuras e das incorreções gramaticais. E que coloca a periferia na vanguarda do cinema brasileiro contemporâneo.

(Publicado originalmente sob o título "Tão longe, tão perto" no Caderno Pensar, A Gazeta, Vitória, 5 de março de 2016.)
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29 February 2016

academy awards 2016

O regreso (The Revenant, Alejandro G. Iñárritu, 2015)

Por que escrever uma crônica sobre os prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles se o autor a) não assistiu à cerimônia de premiação e b) sequer viu todos os filmes indicados nas 24 categorias?


Talvez porque os prêmios sejam o assunto do dia, talvez porque pessoas que não são normalmente ligadas ao cinema param por um instante ao menos para saber quem levou tal ou qual estatueta.


Em primeiro lugar, é preciso dizer que esta crônica surge como um diálogo com críticos e amigos que postaram ideias (às vezes bem melhores que estas) em suas páginas no facebook. Agradeço a Alex Antunes, Bruno Andrade, Eduardo Valente, Fabio Yamaji, Fernando Oriente, Gilberto F. Silva Jr., Laura Loguércio Cánepa, Leandro César Caraça, Marcelo Miranda e Paulo Santos Lima, entre outros, por já haverem levantado algumas destas questões.


I.
O que vale o Oscar? Não vale nada. Ou, talvez, valha muito. É quase certo (mas não conheço números sérios sobre isso) que uma indicação ou o prêmio parecem beneficiar a carreira dos filmes, seja nas salas de cinema, seja em outras janelas de exibição. Quase todo mundo deve ter conhecido alguém que resolveu - com ou sem sucesso - fazer alguma maratona como "ver todos os vencedores de melhor filme" ou "lembrar de todos os vencedores de melhor ator". Uma indicação ou premiação certamente coloca o profissional ou o título no patamar de celebridade. Mas que valores norteiam essas escolhas? O que há em um "melhor filme" para que ele receba o Oscar?

Não há resposta simples a essa pergunta. Como se trata de um prêmio da indústria estadunidente para a indústria estadunidense, existem vários problemas a serem considerados: em primeiro lugar, a auto-celebração: premia-se, preferencialmente, quem tenha um currículo de "serviços prestados" - como Stallone, que não venceu, ou DiCaprio, que venceu. Ou ainda Ennio Morricone, que, se em Os oito odiados não chegou perto de suas obras-primas, merecia, aos 87 anos, levar pelo "conjunto da obra".


O Oscar parece apontar como a indústria de cinema enxerga a si mesma. Nas últimas premiações, vimos os mexicanos dominarem nos quesitos diretor (Cuarón e Iñárritu) e fotografia (Lubezki). É a velha questão da imigração: todos são aceitos, desde que consigam emular o tradicional modelo norte-americano e a ele adicionar uma dose de renovação. Gravidadecomo já escrevemos aqui - é um dos melhores exemplos de filme sobre a ideia de reciclagem, essencial para a indústria cultural. Desta vez, Iñárritu realizou um filme sobre a conquista do território americano que começa com um massacre de brancos por indígenas e termina com uma troca de olhares entre o branco colonizador (aculturado) e o chefe Arikara. Moral da história: no conto de fadas da formação dos EUA, existiriam bons e maus colonizadores, bons e maus indígenas, assim como existiriam, por exemplo, mexicanos que chegam aos EUA para celebrar os grandes valores "americanos" em outros que tentam questioná-los. (Antes de sermos mal interpretados, ressaltamos que a questão da imigração nos EUA - ou a dos refugiados na Europa - é séria demais para ser vista como um enredo que separa os "bons" e os "maus".)

No fundo, parece que Iñárritu ganhou sua segunda estatueta dourada principalmente por conta da cena, logo no início, do ataque Arikara. Com uma grande quantidade de elementos em quadro, todos em frenético movimento (e sempre acompanhados pela câmera): cavalos, água, efeitos visuais de flechas entrando na carne ou de corpos sendo dilacerados a violentos golpes. Uma ópera gore de um virtuosismo que, ao que parece, leva a lugar algum. Enquanto isso, os vários prêmios técnicos de Mad Max: Fury Road (edição, direção de arte, figurino, maquiagem, edição de som e mixagem de som) revelam uma estética mais "equilibrada": ao invés de gastar todos os seus cartuchos nos primeiros minutos, George Miller constrói um filme que parece crescer o tempo todo, avançando inexoravelmente como os carros avançam no deserto pós-apocalíptico da trama. Para um exemplo da maneira meticulosa com que Miller compõe seus planos e como o filme é magistralmente montado, sugiro o comentário do sítio virtual VashiVisuals.



II.
O que entra em jogo em uma premiação dita "técnica"? Além do já citado prêmio pelo "conjunto da obra", é sempre difícil avaliar algumas categorias. Este ano, por exemplo, não parecia haver, entre os concorrentes a fotografia, quem pudesse ter uma vitória "injusta". Talvez o filme de Iñárritu tenha levado este prêmio pela importância que as imagens criadas por Lubezki para o conceito geral do filme, ressaltando cenários deslumbrantes, filmados de uma maneira muitas vezes "etérea" (o que gerou uma exagerada comparação com a obra de Andrei Tarkóvski). Tais imagens adicionam um caráter épico (ou de epopeia) a um enredo que beira o inverossímil e se apoia em longas perseguições ou em cenas dignas de grand guignol. Sem essa elaborada concepção visual, talvez o sucesso do projeto como um todo fosse outro, e os "vazios" das paisagens evidenciassem muito mais o próprio vazio que permeia todo o conceito do longa.

Quando se fala em ator ou atriz, seja principal ou coadjuvante, também é quase certo que grande parte dos concorrentes poderia vencer com justiça. Em ator coadjuvante (talvez um dos prêmios mais polêmicos deste ano), Mark Rylance criou uma espécie de esfinge em Ponte dos espiões, em um personagem cheio de contenção e ambiguidade (e que, ainda assim, conquista a afeição da plateia). Não assistimos a Creed, mas Stallone parecia merecer pelo conjunto de vezes em que interpretou o mesmo Rocky Balboa... Outro favorito era Tom Hardy que, em O regresso, conseguiu criar o único personagem cheio de ambiguidade da trama: nem bom nem mau, trata-se de um homem ferido que acreditava piamente fazer o melhor para sobreviver em um território inóspito. Sua condenação, ao fim do filme, é a vitória do bom e velho maniqueísmo hollywoodiano.


Se O menino e o mundo não tinha chances reais frente a Divertida mente, é menos pelas inúmeras qualidades da animação brasileira que por uma espécie de supremacia dos modelos consolidados - que, também eles, possuem inegáveis qualidades. Escolhe-se o mais "óbvio" frente a algo novo, que parece questionar ou talvez até mesmo subverter valores consolidados. É justamente esse caráter "inclassificável" do filme de Alê Abreu que talvez seja sua maior força. E a simples indicação já representa uma espécie de vitória, devido à divulgação do filme no exterior e ao fortalecimento (que esperamos, seja efetivo) da animação brasileira como um todo. Sobre isso, Sérgio Rizzo escreveu um texto na Folha de S.Paulo.



III.
Spotlight? Uma apenas "correta" (palavra que talvez não diga nada a respeito do filme em si) trama de jornalistas que revelam um grande esquema de pedofilia ligado a sacerdotes da Igreja Católica. Tem muito boas atuações, uma condução segura (aquela impressão, que citamos a respeito de Mad Max, de que o filme avança em linha reta, prendendo assim o espectador) e um "grande tema". (Mas, ao invés da contundência das imagens de George Miller e do fotógrafo John Seale, uma expectativa de que a forma "desapareça" sob os "conteúdos".)

A comunidade judaica (maioria na indústria americana) deve ter se sentido duplamente gratificada em eleger Spotlight: condena a pedofilia (parecendo assim, defensora das grandes causas) e, ao mesmo tempo, cutuca o Vaticano. Lado a lado com Todos os homens do presidente (Alan J. Pakula, 1975), o filme de Tom McCarthy ficará como o registro do que poderia ser o jornalismo investigativo (ou, talvez, resista como um registro arqueológico do que ele um dia foi). Sobre o vencedor de melhor filme, alguns bons textos - em que pouco se fala de cinema e muito de jornalismo -, dos quais destaca-se 9 lições que "Spotlight" te ensina sobre o jornalismo, no El País.

Da cerimônia em si, a ausência (aparentemente vergonhosa) de Manoel de Oliveira no obituário, os vestidos das vedetes no tapete vermelho, os números musicais, as gafes dos apresentadores, o conteúdo dos textos de agradecimento ou a performance de Glória Pires na transmissão brasileira, não podemos discorrer. Da polêmica ausência de negros entre os indicados, deixamos uma palavra de solidariedade e engajamento aos artistas que, liderados pela carta aberta de Spike Lee, fizeram necessário barulho sobre tão importante questão.

Para concluir, algumas questões que não querem calar. Alguém ainda se lembra dos vencedores do último Oscar? Alguém lembrará desses, que agora saem vencedores, no ano que vem? Por que nos importamos tanto com esse prêmio em que sobra o glamour do star system e do mainstream e, quase sempre, falta conexão com os temas da realidade ou com um cinema com mais estética e menos fogos de artifício? Nada contra os fogos de artifício! Eles podem ser bonitos, às vezes apenas tolos, mas passam rápido, brilham por um instante efêmero e logo desaparecem. Por que dar tanta importância a eles?

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28 February 2016

se deus vier que venha armado (2015)

Se deus vier que venha armado | Divulgação

A importância de Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles; Kátia Lund, 1999) para o cinema brasileiro das últimas décadas parece cada vez mais se confirmar. Seu retrato da periferia carioca e da criminalidade, ao tentar se equilibrar entre os pontos de vista da polícia, do crime e dos moradores, tem servido de modelo seja para Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) ou Uma onda no ar (Helvécio Ratton, 2002), seja para Tropa de elite (José Padilha, 2007) ou Alemão (José Eduardo Belmonte, 2014), entre tantos outros.

Se deus vier que venha armado retrata a periferia da zona sul de São Paulo. No prólogo, o filme de Luis Dantas parece flertar com um olhar romantizado: a câmera lenta, a lente teleobjetiva, o figurino que remete a décadas passadas, a trilha sonora grandiloquente, tudo ao redor da personagem feminina, símbolo da perda e do trauma - e que depois, na personagem de Sara Antunes, representará a possibilidade de redenção...

Porém, logo após essa abertura (assinada por outro diretor de fotografia: Jacob Solitrenick ao invés de Hélcio Alemão Nagamine), uma estética mais realista começa a se impor. Durante a apresentação dos personagens, a montagem oscila entre o presidiário em saída temporária e o trabalhador da oficina mecânica, entre a atriz e o jovem policial... O excesso de idas e vindas pretende certo dinamismo, mas acaba por confundir a narrativa. Demora-se a perceber quais os problemas de cada um dos personagens, bem como a relação entre eles. Mas o ritmo parece diminuir quando dois irmãos conversam na laje de uma casa na periferia (e o horizonte noturno revela a arquitetura fragmentada do bairro de classe baixa). Um deles, presidiário em uma saída temporária da prisão; o outro, trabalhador em uma oficina mecânica. O abismo entre ambos é imenso, e o diálogo um tanto artificial pode refletir essa distância, essa falta de intimidade. Quando brincam, simulando uma luta corporal, surge a metáfora de uma proximidade agressiva, revelando que é a violência que liga esses homens, cujas identidades, em certo momento, serão confundidas.

Se Deus vier que venha armado cresce quando entra em cena Palito (Ariclenes Barbosa), que traz essa sensação de "intimidade" para a trama, uma certa "química" antes ausente. Seu personagem - muito jovem, manco, desenvolto, agressivo porém doce - equilibra em si a fragilidade de sua condição física e uma espécie de raiva contida, uma energia prestes a explodir. Uma ambivalência sedutora, que leva o ator do xingamento ao abraço fraterno em instantes. Sua postura corporal (como na dança do hip hop) parece se adaptar aos espaços disponíveis: um passo firme, o outro manco; metáfora da oscilação entre crime e ordem, a distância entre os dois irmãos da cena anterior: distância (às vezes muito pequena) entre o que é "certo" e o que é preciso fazer para se sobreviver, para se atingir algum objetivo.

Enquanto dança, iluminado pelo farol de um automóvel, Palito termina caindo (seu corpo o trai). A queda coincide com os tiros que marcam o início de uma onda de violência: de um lado, os ataques que a organização criminosa PCC realizou na capital paulista em 2012; do outro, a conturbada (e confusa) reação da polícia militar, que chega a realizar execuções sumárias, tema do recente Orestes (Rodrigo Siqueira, 2015) e também de uma entrevista da defensora pública Daniela Skromov para o El País.

O filme de Luis Dantas não se isenta de mostrar os excessos da corporação, mas evita cair no maniqueísmo: a polícia é vista pelo ponto de vista do jovem soldado Jeferson (Leonardo Santiago), que, apesar de perceber a questionável conduta do vaidoso sargento ao qual está subordinado, não esboça reação a isso. A polícia é tratada como uma instituição condescendente com seus próprios erros que termina por reproduzir seu modus operandi. Jeferson parece sofrer porque adivinha que seu futuro é tornar-se outro sargento como aquele que o humilha, e alimentar o círculo de violência e retaliação que rege as relações entre bandidos e policiais. O filme acerta ao não personificar os vilões e em colocar, entre os policiais, o novato que toca em um grupo de samba, com uma avó carinhosa que se orgulha do neto. Pequena peça em um sistema criado para perpetuar uma mentalidade retrógrada, violenta e, em última instância, assassina.

Sara Antunes é a atriz que trabalha em uma ONG na periferia. Em uma cena, ensaia uma dança hip hop com alguns jovens, uma cena que pode beirar a pieguice - o discurso a respeito "do que se passa em seu coração" - mas que termina por retratar a busca, através da consciência artística, do próprio corpo e do próprio espaço. Afinal, é a partir de espaços e deslocamentos que o filme de Luis Dantas se equilibra: os limites tácitos, as fronteiras sociais, a geografia do bairro de classe baixa, a viagem ao litoral, o encontro inusitado à beira da estrada, os ônibus urbanos.

Na cena do píer, filmada em Mongaguá, no litoral paulista, Palito imagina flertar com Cléo. A câmera realiza movimentos circulares ao redor das vigas de madeira que sustentam a estrutura. Em um motel à beira da estrada, uma cama giratória (e a própria câmera novamente em movimentos circulares) cria uma sensação de instabilidade e de suspense, como se as bordas do quadro se tornassem tão fluidas que qualquer coisa (um outro personagem ou um tiro) pudessem a qualquer momento irromper na imagem. Tais cenas revelam um sentido de urgência ao encenarem um imaginário de desejos perdidos, de esperanças que desmoronam. Em ambas as cenas, vertigem e urgência; esperança, morte, incerteza. Entre a solidão da praia e a decoração um tanto brega do motel - os personagens vestidos com robes brancos de algum algodão grosseiro -, há a realização bastante precária dos encontros amorosos e sexuais, encontros insatisfatórios, em que o contato não chega a acontecer.

Ao final, Damião foge rumo a uma tentativa de imolação, algo entre o terrorista e o vingador: caminha rumo aos policiais de braços abertos, tal uma espécie de Cristo revolucionário. Damião não possui futuro, assim como Palito - uma granada para cada um, uma em cada mão. Mas eis que ressurge Palito, a realizar uma intensa, agressiva e surpreendente dança.

Palito dança, mas para quem? A pergunta encerra o filme. Contra a polícia que confunde e troca os documentos de identificação, temos aqui a busca por uma identidade própria, como era a oficina mecânica para o irmão de Damião. A busca, acima de tudo, por um espaço e, quiçá, por um outro nome.

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17 February 2016

trumbo (2015)


Não fosse trágica, a perseguição a membros do Partido Comunista seria um dos episódios mais patéticos da história da indústria de cinema estadunidense. Durante a década de 1950, diretores com simpatias à esquerda do espectro político - como Orson Welles ou Jules Dassin - refugiaram-se na Europa enquanto, nos EUA, armou-se um grande teatro jurídico, liderado pelo senador republicano Joseph McCarthy, que atingiu seu ápice com o episódio dos Dez de Hollywood: um grupo de profissionais que se recusaram a depor frente à comissão do Senado e terminaram presos ou colocados na chamada Lista Negra, o que os impediu de trabalhar. Dessa dezena de homens, alguns – como o diretor Edward Dmytryck – acabaram se rendendo e depuseram frente à Comissão de Atividades Anti-Americanas para conseguir voltar ao trabalho. Outros, como o roteirista Dalton Trumbo, nunca aceitaram fazê-lo.

A cinebiografia do diretor Jay Roach cria o retrato de um personagem impossível de não ser admirado: sagaz, inteligente, espirituoso, rápido nas respostas, de uma lógica mordaz, generoso com os amigos, carinhoso (quase sempre) com a família, inabalável em seus valores políticos. Além disso, trabalhador infatigável e talentoso que, durante os anos em que permaneceu proscrito pela indústria cinematográfica, venceu dois Oscars: o de roteiro por Roman Holiday (A princesa e o plebeu, William Wyler, 1953), creditado a Ian McLellan Hunter; e o de argumento original por Arenas sangrentas (The Brave One, Irving Rapper, 1956), assinado sob pseudônimo.

Essencial para a construção do personagem são os aparentemente inesgotáveis recursos de Bryan Cranston, que é capaz de criar um gestual caricato - como quando salta para fora de um carro com uma garrafa de espumante em cada uma das mãos - ou demonstrar um autocontrole estoico (ao receber o conteúdo de uma taça de bebida no rosto). De sério-dramático ao discutir política ao frasista irônico no embate com John Wayne; do workaholic à beira de um ataque de nervos ao pai de família às voltas com a filha adolescente: o Trumbo de Cranston é um pouco tudo isso. Valesse o Oscar alguma coisa - e, segundo o filme de Jay Roach, ele vale - não seria desmerecido se o ator levasse a estatueta no próximo dia 28 de fevereiro.

Mas, além de Cranston, há pouco a se destacar em Trumbo, bastante convencional em seu enredo (o personagem que vai do céu ao inferno e, então, à redenção final), em seus estereótipos (a esposa compreensiva, o amigo de saúde frágil) e na "discursiva" cena final, com Trumbo verbalizando o "perdão" àqueles que prestaram depoimento durante o macartismo. No caso, a mensagem é endereçada ao grande ator Edward G. Robinson - que, apesar de ter realmente deposto, jamais revelou nomes à comissão do Senado como mostrado. (Não é o caso de exigir, de uma obra de ficção, que seja totalmente coerente com a História. Porém, nesse caso, a inconsistência parece ultrapassar os limites toleráveis.)

Em Trumbo, à primeira vista, a questão central é a perseguição aos comunistas. Mas um olhar mais atento perceberá como a visão política do personagem é apresentada de maneira superficial (o decalque de algo que lembra um piquete em frente a uma fábrica) ou infantil (o pai que explica à filha que “dividir o lanche” definiria algo próximo ao comunismo). Na verdade, o problema são - como sempre - os valores que formaram os Estados Unidos da América: o trabalho, o talento individual etc.

A partir de seu olhar contemporâneo (e contemporizador), o filme não se questiona sobre “como os EUA puderam perseguir comunistas”, mas sobre “como os EUA puderam perseguir profissionais competentes talentosos e, chegando a os impedir de trabalhar, apenas por conta de suas ideologias – sejam quais forem essas ideologias”. Repete-se o mito da imigração: todos são bem-vindos, desde que dispostos a trabalhar. Todos podem ser americanos, especialmente se demonstrarem expertise em alguma área de atuação. (E não foi de outra maneira que o cinema se formou naquele país, mas a partir de judeus do Leste Europeu que resolveram fundar estúdios, de diretores e técnicos oriundos de todas as partes do mundo.)

O discurso final resume o tom conciliador, que não parece dar conta do complexo pensamento de seu personagem central, diretor do filme anti-guerra mais radical do cinema americano, Johnny vai à guerra (Johnny Got His Gun, 1971), que opõe a descoberta da adolescência e os anseios de um jovem (filmados em cor) e seu corpo dilacerado pela guerra, na cama de um hospital (em um contrastado preto e branco).

O socialismo, como diz o título de um livro de John Nichols, é uma "tradição americana". O retrato das esquerdas ainda carece de um grande filme. Ou talvez, por sua própria estrutura (calcada em trajetórias individuais), seja impossível ao cinema narrativo clássico dar conta desse assunto. Uma nova forma precisaria ser forjada para dar conta do pensamento de uma nova sociedade. Trumbo termina como uma potente homenagem ao homem que enfrentou a perseguição macartista, sobrevivendo a ela. É pouco frente ao tamanho dos ideais que motivaram Dalton Trumbo.

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24 July 2015

campo de jogo (2014)


Eram os anos 1990. A cineasta Paula Gaitán morava em Bogotá com os filhos quando ouviu do mais velho que ele queria se tornar jogador de futebol. Ficou contrariada: preferia mil vezes um intelectual, um artista! A insistência do menino foi tanta que, um dia, levou-a a arremessar um de seus sapatos na direção do filho. Por sorte, errou o alvo.

Eryk Rocha, ao invés de jogar bola, terminou cineasta como seus pais. Campo de jogo é o reencontro com sua primeira grande paixão.

O filme começa com um homem a jogar cal nas linhas quase apagadas de um campo de terra. A grama, escassa, aparece aqui e ali... Ele começa pelo círculo central. Depois, marca a linha que divide o meio de campo. O tempo é lento, quase cerimonioso. Logo, está pronto o cenário para o espetáculo.

Um campo precário, de terra batida. Um campeonato quase amador (ou quase profissional?) na periferia do Rio de Janeiro. Não muito distante do Maracanã, como avisa um letreiro. Muito distante do Maracanã, como percebemos pelas imagens: ao invés das arquibancadas monumentais, a torcida aqui está espremida na beira do campo - e, às vezes, dentro dele. Ao invés do glamour, uma espécie de energia atávica, que Eryk Rocha gosta de associar a um ritual pagão.

Campo de jogo imagina o futebol como uma espécie de teatro, dramaturgia de um povo. No futebol amador, as linhas de cal - que delineiam o limite entre cena e vida - torna-se tênue. Não mais o Olimpo estrelado do futebol globalizado, mas corpos e olhares que permanecem magnetizados ao que verdadeiramente interessa: a bola.

A câmera de Rocha é tão atenta à redonda como um torcedor: o foco de atenção se concentra em seu movimento. Usando lentes teleobjetivas, os operadores de câmera precisam incorporar, mimetizando o tema do filme, algo de atlético. Entram em campo. Acompanham as jogadas. Veem-se corpos que caem, sujos de terra, areia. Os uniformes, antes brancos, começam a ficar marrons. Gritos do treinador e do público criam uma algaravia de onde às vezes nota-se algum sentido. Um desenho de som que privilegia a experiência de se ver o futebol em campo, vozes e ruídos que se sobrepõem. Uma multiplicidade de estímulos à visão e ao ouvido.

Campo de jogo nunca é desnecessariamente veloz. Contraria a lógica espetacular da transmissão televisiva e desconstrói identidades (o jogo final entre Juventude e Geração dá espaço para imagens de outras partidas), não se preocupa com certa "objetividade". ("O videotape é burro", já disse Nelson Rodrigues.) Aqui, trata-se da experiência de se jogar futebol e de se assistir a um jogo de futebol.

Trata-se também de acompanhar os bastidores. Ver a preleção do técnico, o momento de rezar antes de entrar em campo. A ira contra a arbitragem. O momento de delírio que é o futebol, festa coletiva organizada ao redor de ícones de poder - como nos rituais xamânicos.

Em certos momentos, como que para ressaltar o elemento épico, Campo de jogo utiliza a câmera lenta e a música erudita, a ópera. O corpo de um garoto negro, recoberto de areia, é uma espécie de rondó no filme de Rocha. Vemos detalhes: o peito, os lábios. Há aqui uma erotização do espetáculo futebolístico, muito distante da valorização dos dotes físicos dos atletas. O jogo é tratado como metáfora de um país, em si, sensual. Um país que joga bola, como bem colocou Pasolini, "em verso", futebol-poesia. Ou, no caso, futebol-cinema-de-poesia.

O corpo misturado à terra - uma ideia de país que entra em campo. Juca Kfouri gosta de repetir uma frase que ele atribui ao sociólogo Gabriel Cohn: "não respeito sociólogo no Brasil que não tenha os fundilhos das calças puídos pelas arquibancadas". Campo de jogo é obra de um cineasta que mostra os fundilhos das calças puídos nos grandes estádios e nos mais modestos cenários das periferias e interiores do país.

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