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28 November 2013

gravity (2013)


é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço
- Ana Cristina Cesar

Do teatro à ópera, do musical da Broadway ao cinema, existe uma certa tradição que sempre lançou mão do grande espetáculo para cativar plateias. Uma escola dos efeitos visuais e da maquinaria, que muitas vezes depende de largos recursos técnicos e, atualmente, também tecnológicos.

Pois a tecnologia (e sua obsolescência) estão no coração de Gravidade, novo filme do mexicano Alfonso Cuarón: na trama, os grandes "vilões" são destroços de satélites, lixo espacial. Na cena inicial, a doutora Ryan Stone (interpretada por Sandra Bullock) está realizando uma manutenção no telescópio Hubble e, daí em diante, ela ainda precisará folhear manuais para lembrar como se pilota um módulo espacial e tentar fazer funcionar um equipamento com indicações impressas em mandarim...

A tecnologia também é responsável pelos efeitos visuais do filme, e grande parte do interesse em Gravidade vem de seu impacto visual, das piruetas de atores e câmera, aparentemente soltos no espaço, flutuando na ausência de gravidade. Porém, tantas circunvoluções espetaculares de câmera e atores parecem esconder, é necessário admitir, um pouco mais do mesmo.

De tempos em tempos, o cinema americano - principalmente o de grande orçamento - precisa de uma boa chacoalhada: um filme que consiga atualizar os clichês do cinema narrativo clássico e que reconquiste a credibilidade de plateias anestesiadas por fórmulas e estruturas repetidas ad nauseum. E, uma vez que esse objetivo é atingido, podemos concluir, como na célebre frase do livro de Lampedusa, "plus ça change, plus c'est la même chose".

Como tantos talentos recentes, Cuarón foi revelado em outro país e depois fagocitado pela grande indústria americana. Mostra que aprendeu a receita de trazer novidade (e novo fascínio) a um esquema viciado, ao mesmo tempo em que demonstra respeito pelas regras desse mesmo sistema. Seu filme é uma trajetória de superação, de renascimento, de fé nas capacidades do indivíduo frente às adversidades. Traz um esquema tantas vezes visto e revisto: protagonista com um trauma a ser superado e um segundo personagem que funciona como "mentor" dessa protagonista - algo como o binômio "policial iniciante" e "policial tarimbado" de dúzias de filmes, ou a versão atualizada de "novato chega a cidade para lutar ao lado do experiente xerife" etc. etc. etc.

Como tudo tem seu preço, Cuarón mantém-se fiel também aos problemas desse cinema: como sobre nada podem restar dúvidas e absolutamente tudo precisa ser explicado, existem diálogos que, mesmo com o esforço de serem justificados, parecem fora do lugar. Especialmente a segunda metade do filme poderia ser mais silenciosa, mas então estaríamos no território de 2001: uma odisseia no espaço, que entendia o cosmos como algo misterioso (e muito próximo a uma trip de LSD).

A estrutura do filme respeita todas as convenções narrativas tradicionais dos manuais de roteiro, sendo bem dividida em três atos dramáticos: o primeiro, do início do filme até a separação da doutora de seus companheiros, que vai obrigar o personagem de George Clooney a executar um primeiro resgate; o segundo, até o momento em que a personagem, após aparentemente desistir de lutar, ganha novo ânimo; e o último, desse ponto (a nova tentativa de se salvar) até a cena final. Existem vários deadlines: oxigênio prestes a terminar, destroços que podem retornar, nave prestes a explodir, momento exato de se ejetar próximo a uma estação espacial etc. Cinema clássico tradicional com um visual espetacular que cheira à novidade.

O espaço de Cuarón, essa espécie de "museu" de tecnologias passadas, parece uma boa metáfora do que é o cinema de grande público: uma imensa maquinaria, que às vezes chega a se revelar precária e que, depois de várias vezes utilizada, fica orbitando na atmosfera, à espera de se incinerar ao reentrar na atmosfera. Cuarón trabalha com sobras, com o lixo da indústria cultural, e lhe dá cara nova, repleta de interesse. Outro cineasta estrangeiro trabalhando em Hollywood, Neill Blomkamp, também utilizou, em Elysium, a ideia do lixo como lugar de onde novas possibilidades podem surgir.

São cineastas da reciclagem, essa palavra tão em voga em tempos de "sustentabilidade". Oriundos de outras realidades sociais, são realizadores ao mesmo tempo aficionados pelo cinema de massas e acostumados a serem tratados como depósito para todo tipo de produto de segunda categoria da indústria cultural. Aprenderam a realizar seu ofício reciclando esses materiais em suas condições materiais de produção, e assim conseguiram, ao menos esteticamente, superar a matriz. Blomkamp vê contradições nesse processo, um fosso intransponível entre "matriz" e "filial" - ou, para sermos antiquados e anacrônicos, "metrópole" e "colônia" ou "primeiro" e "terceiro" mundos. O filme de Cuarón se mostra menos crítico, mas sua força permanece: ela está na contundência de suas imagens, no ritmo de sua encenação, no fascínio de corpos girando livremente (e, por isso mesmo, perigosamente) no espaço.

Post Scriptum... durante a sessão de Gravidade, a memória de outro filme insistia em retornar: Missão: Marte, de Brian de Palma, obra um tanto subestimada, considerada por muitos um filme "menor" do diretor. Compare-se o destino dos personagens de Tim Robbins (em de Palma) e George Clooney (em Cuarón); o suspense em montagem paralela (recurso abundante em de Palma) e as soluções similares adotadas em Gravidade etc. Mas note-se também as diferenças: a questão de Cuarón, no final das contas, é individual, é o destino de uma pessoa. O horizonte, em de Palma, é mais coletivo e - por que não dizê-lo? - mais "transcendente". No fundo, a origem dos dois filmes (e de muitas de suas soluções visuais) é o 2001 de Kubrick, mas os caminhos tomados são distintos e revelam muito sobre as opções e o engajamento de cada um de seus realizadores.

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